sexta-feira, maio 30, 2008

Dia de luz e poesia






Dia de luz e poesia - por Izabel Rosa


Em alguns dias estou bege. É apenas um tom pastel e me colore inteira. Cor de lua, de claridade, de dia nublado. Cor de sentimento. Reveste também a poesia. Está em tudo e nem todos a percebem.

Num desses momentos, descobri o poeta português Eugenio de Andrade e seus versos tocantes. Li, e reli. Bêbada de poesia, a alma descobriu-se calada, tocada, ferida. Ser flutuante busquei o grande Mário Quintana e seu cotidiano lírico.

Na mesma janela, meu olhar se fez outro.

O pássaro balança na calha, depois voa e equilibra o som no arame estendido. Treme o corpo inteiro no trinado longo. Entrega-se à música. Transforma-se em assobio e meu olhar o perde.

Ganho um presente. A ave dirige-se à vidraça da casa vizinha e faz uma festa de canções e vôos curtos para a sua própria imagem. Às vezes simula um ataque. Toma distância e se aproxima veloz a fim de intimidar o adversário. Noutras o ritual é de acasalamento. Lânguido e lento, fica no parapeito mirando aquele ser tão familiar e tão inatingível.

Penso em mim e na minha imagem. Às vezes ela é familiar, muito próxima e reflete meu ser inteiro. Mas, vê-la assim exposta deixa-me fragilizada. Assusta-me a sensibilidade às claras e acoberto as chagas. A postura é de ataque. Aliso as penas, alço vôo, mostro uma imagem como o mundo quer. Preparada para a batalha, disposta a usar todas as armas, vencer todas as lutas.

Encontro uns olhos negros fitando-me atônitos. É meu cão. Parece querer desvendar meu silêncio. Por que estou triste se a vida é tão simples? Ah! os animais. Que sabem eles das angústias da alma humana? Que sabemos nós da sua placidez sem alma?

Então surge um verso. Dorido. Dor de parto. Urgente, rasga a carne. Surpreende-me a imagem nascida. É tão inquieta a idéia. Moldada em ínfimo instante. Explode completa, resolvida. Não reconheço sua origem. Filha ilegítima, não a concebi. Brotou espontânea, como semente que o vento trouxe e germinou no vão da calçada.

Emendo as tramas do pensamento. O pássaro, o canto, os olhos do animal. Nada define o início da rede que se tornou poesia. Ignoro o elo que se rompeu e a libertou do calabouço. É minha a dor resultante. Espasmos contraindo o rosto e salgando a boca com lágrima e silêncio. Olho-a enternecida, qual a mãe a afagar os cabelos da filha que agora é sua. É o primeiro carinho recebido por ela. Alinho os versos, substituo um verbo. Leio e releio. Não estou certa de sua beleza. Não me convenço de que esteja acabada e pronta. Descreio da verdade oriental de Gibran: “os filhos são flechas para o mundo”. Escondo-a na gaveta. Protejo-a das críticas dos sábios - metáforas demais. E da franqueza dos leigos - Poesia?

Aguardo outro dia em que lua esteja bege. Talvez a revise e a salve da pecha de filha adotiva. Ou então, num matricídio convicto, a destinarei ao limbo. Verso morto na cesta de papéis.


Izabel Rosa. Curitiba - PR
izabelrc1@yahoo.com.br



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